domingo, junho 06, 2010

Hoje decidi publicar aqui neste nosso blog a recensão crítica que a Maria Aida Duarte me enviou através da minha irmã Cristina.

Porque este texto me ajudou a compreender bem melhor o que tenho escrito e a ver os caminhos por onde vou.

A ela o meu Muito Obrigado pelo texto e pela amabilidade em permitir que eu o partilhe convosco.



RECENSÃO CRÍTICA DA OBRA

«COMO UM RIO»

DA AUTORIA DE:

Eduardo Leal

«Escrevo... porque as palavras me sufocam, porque gosto e necessito, porque, se não escrevo, seca-se-me a alma...».

Isabel Allende, Vida e espíritos.

O poeta diz-se «...ancorado sem ter mar e sem ter rio...» (in «Às vezes... só de olhar para ti», acabando por encontrar um rumo, «...chegarei ao fim / ancorado em ti...» (in «partindo do princípio»).

A propósito da obra poética “COMO UM RIO”, de Eduardo Leal, ocorre-nos dizer que, antes de mais, o sujeito poético refugia-se na sua torre de marfim, um espaço interior que lhe confere o momento da criação poética:

O mundo é a casa que fazemos / e os sonhos que pensamos... / Assim somos nós... / .../ animais cativos em frágeis ratoeiras. (pg.34).

É a passagem para o mundo da evasão, do sonho que lhe dá asas de ir e voltar, é o pássaro errante que volta, quanto mais não seja pela força do Amor:

Os sonhos... / são pequenas aves, / pássaros sem casa / ... / Os sonhos, / abominam as gaiolas... / soltos, /.../ São aves famintas, / .../ E nós somos como eles... (pg.35).

Numa abordagem direccionada para a mensagem contida nesta obra, encontramos claramente um fio condutor que mais não é do que a fruição da vida. É este desejo expresso de sorver a vida, o factor que garante à obra a unidade temática e discursiva.e lhe reconhecemos: Viver é ser excessivo. (pg.46).

O poeta faz desfilar, diante dos nossos olhos, sentimentos reveladores da força de viver, algumas vezes associada ao apreço dado à liberdade e à fugacidade da vida imposta pelo lado implacável do tempo que flui, inexoravelmente e contra a sua vontade:

... a liberdade toda que o teu olhar agora alcança... (pg.33).

O segundo tema acima referido, constitui uma constante e aparece associado à condição humana, conferindo-lhe um lado dramático. Com efeito, a inevitabilidade da passagem do tempo, a efemeridade da vida humana, desenham um quadro de algum dramatismo que traz ao sujeito poético uma assumida incapacidade de superar: Porque o tempo voa /... / Porque o tempo morde... (pg. 23).... que a vida é breve, não dura... (pg. 28).

Se eu pudesse ao menos... / aprisionar o tempo... (pg. 41).Enganando o tempo... /... / A vida é curta, é bem certo... (pg 59).

Para este drama do fluir temporal, o sujeito poético encontra uma saída, a saída possível, num universo da transfiguração do mundo real, por obra da poesia: ele torna-se um irónico coleccionador de brinquedos, fintando assim o tempo. Visiona a criança que já não é, ou que ainda o é pela força da poesia. Será uma forma airosa de ligar o nascer da vida, à morte, à recta final:

Colecciono brinquedos... / enganando o tempo / que una o princípio e o fim. / Que eu leve comigo a criança... / ao colo de quem me tornei (pg.59).

Dir-se-ia que se trata de uma TEMÁTICA recorrente, esta da água. Que outra forma haverá de trazer ao leitor a fluidez das imagens que, de tão evocativas, soltam os nossos olhos na placidez de um rio, na imensidão do mar, na frescura do orvalho, na chuva sem torrentes e na força das marés?

Os poemas das páginas 17, 19, 23, 27, 28, 30, 32, 36, 38, 40, 43, 45, 47, 55, 56, 58, 60, 63, 66 e 67 remetem para este universo de evasão procurada, onde não faltam o vento (pg.47), as velas(pg.28), um barco (pg.32) nem um porto de abrigo (pg. 30). São elementos que se inscrevem, quer num plano do real, quer num plano metafórico, tantas vezes associados à fuga de um quotidiano sem espaço para o devaneio, ou então, e por diversas vezes, em momentos descritivos do corpo da mulher amada. Nas palavras do sujeito poético, «... e peguei na minha cruz / e fiz um barco à vela. / Tu deste o vento!». ( in «Como se fosse o último»), a amada representa, para além do mais, uma inefável forma de entrar num outro universo (o poético) que o quotidiano real lhe nega.

O sujeito deixa no ar esta força que o impele para um mar, para o oceano, qualquer coisa através da qual ele se demarca do real, derrubadas que ficam as barreiras, apagados que ficam os contornos de um mundo aquém da criação poética. É então que os caminhos que trilha não são mais do que a magia do sonho, a acalmia do devaneio. Nesse contexto, a expansão lírica solta-se e o leitor agarra esse voo indizível tão expressivamente metaforizado nos versos «Se o mundo fosse água apenas.../ Quereria ser um barco!» (pg.60) e «... os sonhos... / são pequenas aves.../ os sonhos / abominam as gaiolas...» (pg. 35). Ainda a propósito da presença de elementos simbólicos forjados na temática da água, os olhos do leitor fixam-se na imagem de «...um beijo...» que, num movimento sublime de transfiguração do real, o poeta descreve como «... um encontro de dois rios...». (pg.36).

Figurativa ou não, a temática amorosa perpassa por toda a obra e reveste-se de tons claramente sugestivos de paixão exacerbada e exclusivista, quase obsessiva, que não questiona a força do desejo, o despudor da carnalidade. É a força avassaladora do amor que tudo vence e relativiza. Vejam-se as imagens «discutir as curvas do teu corpo», «enquanto desço dos teus seios»; «marinheiros ofegantes»; «e na barca dos amantes» / «voltamos a partir» inseridas no poema da página 62. Esta riqueza imagística aflora no retrato da mulher amada traçado nos versos «Tu... / Primeiro evaporar / do orvalho / nas primeiras flores». A concepção da mulher amada como algo que é fonte de plenitude, porto seguro, sem deixar de ser objecto de desejo, leva-nos para uma concepção de Amor entendido como algo de inicial. Este rasgo poético está patente na página 17, em: «Tu... / Primeiro evaporar / do orvalho / nas primeiras flores».

O tema da condição humana está sempre subjacente à ordem das coisas e do mundo real descrito pelo poeta. A atestá-lo estão imagens como: ... macaquinhos que roem a casca do meu sorriso.../ Estêrco... / É o mar que se evapora / e seca toda a sua água...(pg.19). Este tema leva-nos para um plano mais filosófico – o da dicotomia vida / morte. O sujeito poético nega-se a encarar a morte como algo de mórbido e definitivo. Neste particular., ele posiciona-se numa perspectiva de eternidade, daí um hino que faz à morte, que aceita como se ironicamente de uma festa se tratasse. É a superação da morte, pela vida. Tudo isto nos diz o poema da pág.15: Que um homem / só se termina / se a morte for a alegria / da festa de uma vindima.

Apesar de tudo, e atendendo ao facto de o sujeito poético tentar afastar sentimentos de negatividade, eles afloram aqui e ali, num rasto de desencanto, de solidão e de incerteza. Aí, a metáfora da partida é a saída possível, o seu barco à vela (pg.67):

peguei na minha cruz

e fiz um barco à vela.

Em termos formais, registar-se-á a fluência da linguagem e a riqueza das metáforas e a força sugestiva das imagens. Para o efeito, seleccionámos os textos poéticos das páginas 17 e 35:

... o mel/das pétalas/dos meus dedos.

Tu... / primeiro evaporar do orvalho / nas primeiras flores.

Os sonhos... / são pequenas aves, / pássaros sem casa...

Os sonhos, / abominam as gaiolas

São aves famintas.../ pequenos pardais perdidos

A apreciação crítica, que acabamos de fazer, mais não pretende do que ser um breve olhar sobre o universo poético que se nos oferece nesta obra.

Porto, 14 de Abril de 2010

Maria Aida G. de Araújo P. Duarte

1 comentário:

Unknown disse...

Maravilhoso!...
.
[Beijo...@]